Terça-feira (20/05/2025) — A imposição judicial decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para o fornecimento do medicamento Elevidys, avaliado em R$ 17 milhões, de uma única dose a um único paciente, a despeito do expressivo impacto fiscal no orçamento público do Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS), não pode ser compreendida como um caso isolado. O episódio evidencia, de forma clara e, em tese, a consolidação de um modelo institucional degenerado, identificado pela ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedora nacional de Justiça Eliana Calmon, como caracterizado pela atuação de “bandidos de toga”, práticas de “filhotismo” e o que ela denominou de “mulherismo” no âmbito do Poder Judiciário e do Ministério Público. Trata-se de uma estrutura corporativista e patrimonialista, frequentemente alheia ao interesse público e que compromete os princípios fundamentais do regime republicano.
O valor de R$ 17 milhões equivale a aproximadamente metade do custo de implantação de uma Policlínica Regional de Saúde pelo Governo da Bahia e corresponde a quase um quinto do investimento necessário para a construção de um hospital regional de médio porte. A comparação escancara o desequilíbrio institucional e a inversão de prioridades, especialmente quando decisões judiciais individuais geram impactos orçamentários de grande escala, sem a devida consideração pelo planejamento e pelo interesse coletivo.
Entenda os conceitos: Bandidos de Toga, Filhotismo e Mulherismo
“Bandidos de Toga”: uso do Judiciário para fins privados
A expressão “bandidos de toga”, cunhada pela ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ex-corregedora nacional de Justiça Eliana Calmon, refere-se a magistrados que, apesar de investidos na função de guardiões da legalidade e da moralidade pública, utilizam o cargo para práticas ilícitas, favorecimentos pessoais e corrupção institucionalizada.
A fala emblemática foi proferida em 2011, quando Eliana Calmon ocupava o cargo de corregedora nacional de Justiça no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em entrevista, ao defender maior rigor na fiscalização do patrimônio dos magistrados, ela afirmou:
“Infelizmente, temos hoje no Brasil bandidos escondidos atrás da toga.”
Com essa declaração, Eliana rompeu um dos tabus mais enraizados no sistema judicial brasileiro: a ideia de que juízes não podem ser investigados ou criticados, mesmo diante de indícios concretos de enriquecimento ilícito, tráfico de influência, venda de sentenças e outras condutas incompatíveis com a magistratura.
A ministra denunciava, de forma direta, que o corporativismo dentro do Judiciário impede a responsabilização de seus membros, criando uma casta com privilégios e imunidades de fato, em desacordo com o princípio republicano da igualdade perante a lei. A reação da cúpula do Judiciário foi imediata e virulenta, demonstrando o quanto o sistema se fecha diante de tentativas de transparência.
Portanto, ao usar o termo “bandidos de toga”, Eliana Calmon denunciava a existência de magistrados corruptos e, sobretudo, um sistema de blindagem institucional que os protege, minando a confiança pública na Justiça e comprometendo o funcionamento do Estado de Direito.
Filhotismo: o apadrinhamento que compromete a República
A ex-ministra Eliana Calmon, ao empregar o termo “filhotismo”, fez referência crítica a uma prática recorrente e profundamente nociva dentro do Poder Judiciário e de instituições do sistema de Justiça brasileiro, caracterizada por nepotismo disfarçado, favorecimento pessoal, proteção corporativa e apadrinhamento.
Mais especificamente, “filhotismo” alude à promoção ou proteção de filhos, parentes e aliados de magistrados e membros do Ministério Público, seja por meio de nomeações, concursos, progressões funcionais ou blindagem institucional, muitas vezes à margem dos critérios objetivos de mérito, impessoalidade e interesse público. Trata-se, portanto, de um mecanismo de perpetuação de privilégios dentro de estruturas estatais que deveriam prezar pela isenção, imparcialidade e meritocracia.
Durante seu mandato como corregedora nacional de Justiça (2010–2012), Eliana Calmon enfrentou forte resistência de setores da magistratura ao tentar abrir a chamada “caixa-preta do Judiciário”, denunciando práticas como salários acima do teto constitucional, enriquecimento ilícito, tráfico de influência e favorecimento de parentes — o que ela sintetizou como a presença de “bandidos de toga” e a cultura do filhotismo, que corroem a credibilidade das instituições.
Portanto, ao denunciar o “filhotismo”, Eliana Calmon apontava a existência de uma elite jurídica que utiliza o poder institucional não em defesa da Justiça, mas como meio de garantir benefícios pessoais e familiares, consolidando uma espécie de casta intocável e hereditária no interior do Judiciário brasileiro.
Mulherismo e as relações de poder no Estado brasileiro
O termo “Mulherismo”, conforme empregado por Calmon, designa a instrumentalização da condição feminina como mecanismo de blindagem de poder, especialmente quando vinculada a relações familiares com membros do Judiciário, do Ministério Público ou do Executivo. Trata-se de um desvirtuamento da pauta legítima da equidade de gênero, substituída por estratégias de reprodução patrimonialista do poder por meio de esposas, noras, filhas ou companheiras de agentes públicos.
Sob a retórica da representatividade feminina, essas mulheres são frequentemente nomeadas para cargos estratégicos em ouvidorias, corregedorias, tribunais de contas, conselhos administrativos e cartórios extrajudiciais, convertendo laços afetivos em escudos institucionais contra a responsabilização civil, administrativa ou penal de suas famílias.
Além das nomeações em órgãos públicos, ganha destaque a atuação em escritórios de advocacia ligados a essas estruturas familiares, especialmente em casos nos quais noras ou filhas de membros do Ministério Público ou do Judiciário atuam como advogadas em ações contra o próprio Estado, inclusive litigando em matérias sob jurisdição direta de seus sogros ou pais. Essa prática configura grave conflito de interesses, frequentemente ocultado sob registros de sociedades informais ou uso de procuradores de fachada.
A presença dessas advogadas em bancas jurídicas com trânsito privilegiado no sistema de justiça é um dos elementos centrais da engrenagem de proteção mútua. Elas não apenas influenciam decisões judiciais em favor de seus clientes — que muitas vezes incluem fornecedores do Estado ou empresas da área de saúde — como beneficiam-se de informações privilegiadas e acesso direto a magistrados e promotores, em um circuito fechado de favorecimento.
Esse modelo se sustenta em um discurso de “empatia”, “cuidado com a vida” ou “sensibilidade social”, mobilizado como blindagem ideológica para neutralizar críticas e obstruir questionamentos legítimos. Quando confrontadas, as nomeações ou vínculos profissionais são justificadas por mérito individual ou por um suposto compromisso com pautas sociais, ocultando-se o projeto de manutenção hereditária do poder público em mãos de oligarquias burocráticas-familiares.
No âmbito institucional, servidoras, promotoras e magistradas com vínculos diretos com o alto escalão desempenham papel ativo em corregedorias, ouvidorias e comissões de ética. Nessas funções, são frequentemente encarregadas de arquivar denúncias sensíveis ou deslegitimar investigações sob a alegação de misoginia ou perseguição institucional, em um movimento que transforma as estruturas de controle interno em mecanismos de defesa corporativa.
Essa arquitetura de blindagem institucional conecta-se diretamente aos fenômenos do “filhotismo” e dos “bandidos de toga”, consolidando clãs jurídico-burocráticos que distorcem os fundamentos da administração pública — legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A simbiose entre interesses familiares e função pública captura o Estado e enfraquece os sistemas de controle, comprometendo a ação das corregedorias, das controladorias e da imprensa investigativa.
Exemplos recorrentes do “mulherismo institucional”:
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Esposas de magistrados nomeadas para cartórios extrajudiciais de alto rendimento, sem processo seletivo transparente;
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Noras de procuradores e promotores atuando em escritórios que litigam contra entes públicos vinculados aos próprios familiares;
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Companheiras de juízes ou promotores registradas como sócias ocultas em empresas fornecedoras de medicamentos ou serviços de saúde, favorecidas por decisões judiciais oriundas dos mesmos núcleos familiares;
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Filhas, cunhadas ou sobrinhas de autoridades designadas para corregedorias ou comissões disciplinares com poder de arquivamento de denúncias.
Esse fenômeno configura não apenas uma distorção ética, mas um vício estrutural que corrói os alicerces da República. Ao substituir mérito por parentesco e técnica por vínculos afetivos, o “mulherismo institucional” transfigura o espaço público em extensão do domínio privado, transformando o Estado em patrimônio de famílias influentes e dificultando a responsabilização de seus membros.
Degradação institucional e ruptura do pacto republicano
A partir dos conceitos estruturados por Eliana Calmon, em tese, o caso do medicamento Elevidys deixa de ser um episódio isolado e passa a representar um modelo de funcionamento sistêmico no Brasil contemporâneo: decisões judiciais favorecendo interesses de grupos organizados, redes familiares dominando cargos estratégicos e o uso oportunista de pautas humanitárias para camuflar a deterioração ética das instituições.
O Ministério Público, que deveria fiscalizar o uso dos recursos públicos, e o Poder Judiciário, que deveria garantir a legalidade e a justiça distributiva, tornam-se operadores centrais desse sistema de transferência regressiva de renda. Não há ali tutela do bem comum, mas parasitismo institucionalizado à custa da penúria da maioria da população brasileira e da degradação das políticas públicas.
O resultado é a corrosão das bases republicanas do Estado, a inversão das prioridades constitucionais e a perda de legitimidade das instituições. A justiça, longe de ser um poder de equilíbrio, torna-se instrumento de concentração de poder e renda — exatamente o que a Constituição Federal de 1988 se propôs a combater.
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Uma resposta
Matéria brilhante. Traduz exatamente o que ocorre atualmente no carcomido poder judiciário. Sugiro que oportunamente seja publicada matéria abordando a participação de filhos, esposas e esposos de Juízes, Desembargadores e Ministros, em escritórios de advocacia com inúmeros processos apreciados e decididos por esses membros do poder judiciário, sem qualquer constrangimento ou mínimo de vergonha.