O ministro Antonio Saldanha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirmou nesta terça-feira (09/12/2025) que o STJ e o Supremo Tribunal Federal (STF) descumprem suas próprias jurisprudências, classificando a postura das Cortes como “um péssimo exemplo” para os tribunais de primeira instância. A declaração ocorreu durante um debate público e acalorado na 6ª Turma do STJ, motivado pelo julgamento de um habeas corpus envolvendo condenação por roubo.
A controvérsia surgiu durante o julgamento de um habeas corpus que questiona uma condenação a 7 anos, 4 meses e 20 dias de prisão pelo crime de roubo. O caso teve sua análise suspensa após pedido de vista do ministro Carlos Pires Brandão, mas o debate entre os ministros já havia revelado uma divergência profunda sobre o uso de provas no processo penal.
A condenação em discussão baseou-se, essencialmente, no reconhecimento do acusado pela vítima na delegacia, sem a apresentação de outras provas independentes. Esse ponto foi o centro do embate entre o relator do caso, Antonio Saldanha, e o ministro Rogério Schietti, conhecido por sua atuação rigorosa em defesa das garantias processuais penais.
Saldanha votou pela manutenção da condenação, entendendo que o reconhecimento da vítima seria suficiente para validar a sentença. Schietti, por sua vez, apresentou divergência frontal, sustentando que o reconhecimento isolado não pode, por si só, embasar uma condenação criminal.
Reconhecimento de suspeitos e o Tema 1268 do STJ
Ao fundamentar sua discordância, Rogério Schietti citou o Tema 1268 do STJ, precedente firmado pela Corte que estabelece critérios rigorosos para a validade do reconhecimento fotográfico ou pessoal. Segundo esse entendimento, o reconhecimento é considerado inválido se não forem observadas as regras do artigo 226 do Código de Processo Penal.
Essas normas foram concebidas para reduzir vieses e erros judiciais, exigindo, entre outros pontos, que a vítima descreva previamente o suspeito e que o reconhecimento ocorra, sempre que possível, com o investigado colocado ao lado de outras pessoas com características físicas semelhantes.
Para Schietti, mesmo quando essas regras são formalmente observadas, o reconhecimento não deve ser tratado como prova única. Na sua avaliação, é indispensável que existam provas autônomas e independentes capazes de corroborar a acusação e garantir a segurança jurídica da condenação.
“Faz cinco anos que nós já definimos isso. Não tem cabimento estarmos rediscutindo o tema”, afirmou Schietti, ao destacar que o entendimento já estaria pacificado no âmbito do próprio STJ.
Acusações de ruptura da jurisprudência e reação de Saldanha
O debate se intensificou quando Schietti acusou o relator de violar a jurisprudência consolidada da Seção Penal do STJ, alertando para os riscos institucionais dessa postura. Segundo ele, decisões contraditórias dentro do próprio tribunal fragilizam a autoridade dos precedentes e geram insegurança jurídica nas instâncias inferiores.
“É inacreditável que, de uma hora para outra, numa sessão da turma, a gente jogue fora toda a jurisprudência da seção”, declarou Schietti, em tom crítico.
A resposta de Antonio Saldanha foi direta e contundente. O ministro afirmou que o descumprimento de precedentes não é um fenômeno isolado, mas uma prática recorrente dentro do próprio tribunal — inclusive entre os ministros que defendem a observância estrita da jurisprudência.
“Não respeitar jurisprudência? Todos nós fazemos”, afirmou Saldanha, acrescentando que essa prática também ocorre no Supremo Tribunal Federal, o que, segundo ele, compromete a coerência do sistema judicial como um todo.
Foi nesse contexto que Saldanha classificou o comportamento das Cortes Superiores como “um péssimo exemplo” para os juízes de primeiro grau, que, frequentemente, são cobrados a seguir precedentes que nem sempre são observados pelas próprias instâncias máximas.
Visões opostas sobre a prova no crime de roubo
Ao justificar sua posição, Saldanha defendeu que, em casos de crime de roubo, não se deve exigir um conjunto probatório excessivo além do reconhecimento da vítima. Para o ministro, essa exigência pode inviabilizar a persecução penal e impor um ônus desproporcional à vítima.
“Eu sou roubado e ainda tenho que fazer prova de que o ladrão é aquele que eu reconheci”, criticou o ministro, ao questionar o rigor adotado por parte da jurisprudência recente.
A divergência revela uma tensão permanente no direito penal brasileiro: de um lado, a proteção das garantias individuais do acusado; de outro, a efetividade da repressão penal e a valorização da palavra da vítima em crimes patrimoniais.
Crise de coerência e autoridade das Cortes Superiores
As declarações de Antonio Saldanha expõem, de forma incomum, uma crise de coerência interna nas Cortes Superiores brasileiras. Quando ministros admitem publicamente o descumprimento sistemático de precedentes, o efeito simbólico é profundo e atinge diretamente a credibilidade do sistema de precedentes, pilar do atual modelo processual brasileiro.
A divergência também evidencia uma fragmentação interpretativa dentro do STJ, especialmente na área penal, onde decisões contraditórias impactam diretamente a liberdade dos réus e a previsibilidade das decisões judiciais. A ausência de uniformidade enfraquece a função do tribunal como instância de estabilização da jurisprudência nacional.
Além disso, o embate reforça um dilema estrutural do Judiciário brasileiro: exigir rigor das instâncias inferiores enquanto as Cortes Superiores flexibilizam seus próprios entendimentos. Esse paradoxo alimenta insegurança jurídica, amplia o espaço para decisões discricionárias e compromete a autoridade normativa dos precedentes.
*Com informações do jornal O Globo.
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