O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), iniciou na quarta-feira (04/06/2025) a leitura da primeira parte de seu voto no julgamento que discute a responsabilidade das plataformas digitais por conteúdos ilegais publicados por usuários. A decisão, de forte repercussão, envolve a vigência do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), os limites da moderação privada e os riscos de censura judicial. O julgamento prossegue nesta quinta-feira (05/06/2025).
Liberdade de expressão como direito preferencial e pilar da democracia
O voto enfatiza que a liberdade de expressão é um dos fundamentos estruturais do Estado Democrático de Direito, sendo indispensável à formação da opinião pública, ao controle social do poder e ao exercício pleno da cidadania.
“É lícito no Brasil duvidar da existência de Deus, de que o homem foi à lua e também das instituições. A partir do momento em que um povo é proibido de desconfiar ou é obrigado a acreditar, instaura-se o ambiente perfeito para subjugá-lo”, declarou Mendonça.
O ministro cita Gustavo Binenbojm, para quem a liberdade de expressão possui uma dimensão moral (por sua ligação com a dignidade humana) e instrumental (por garantir o pluralismo e a deliberação democrática). Também remete à ADPF 130, que consolidou o entendimento de que a liberdade de imprensa é cláusula pétrea, com prevalência em face de outros direitos fundamentais, salvo em casos de violação manifesta e específica.
Regulações internacionais e a defesa do artigo 19 do Marco Civil
No plano internacional, Mendonça compara os sistemas dos Estados Unidos e da União Europeia:
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EUA (Seção 230 do Communications Decency Act): estabelece imunidade das plataformas digitais quanto a conteúdos de terceiros, favorecendo a inovação e a livre expressão.
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UE (Digital Services Act e NetzDG alemão): impõe obrigações ativas de moderação de conteúdo, com risco de excessos e vigilância estatal.
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Brasil (Marco Civil da Internet): o artigo 19 determina que só há responsabilização das plataformas mediante ordem judicial, preservando o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade.
Mendonça defende que alterações no regime jurídico vigente devem ser debatidas pelo Congresso Nacional, sob pena de ingerência do Poder Judiciário em matéria legislativa e de censura indireta.
Doutrina crítica à judicialização da liberdade de expressão
O voto está inserido em um debate mais amplo sobre os limites constitucionais da jurisdição constitucional e as ameaças ao pluralismo informativo. Diversos autores têm criticado o uso desproporcional do sistema de Justiça para silenciar, coibir ou intimidar a atuação da imprensa e o discurso público.
Entre os principais nomes da doutrina crítica, destacam-se:
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Owen Fiss, professor de Yale, que sustenta que “a repressão estatal indireta por via judicial é tão perigosa quanto a censura direta”, sobretudo quando a intervenção judicial ocorre sem devida transparência ou respaldo democrático.
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Ronald Dworkin, para quem o Estado deve maximizar o espaço da deliberação pública, mesmo quando ideias ofensivas ou impopulares estão em jogo, pois a censura “corrói os pilares do discurso racional e democrático”.
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Eric Barendt, especialista em liberdade de imprensa, argumenta que a “excessiva litigiosidade e ativismo judicial contra a mídia leva à autocensura, enfraquecendo o papel fiscalizador da imprensa”.
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Nelson Nery Junior e Ingo Wolfgang Sarlet, no contexto brasileiro, também criticam decisões judiciais que extrapolam os limites constitucionais da tutela jurisdicional, especialmente quando se afastam do devido processo legal e dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Além disso, o jurista Lenio Streck adverte contra o que chama de “censura institucionalizada por ordens judiciais precárias”, muitas vezes “calcadas em fundamentos vagos de ‘fake news’ ou ‘proteção da honra’”, sem demonstração clara de dano concreto.
Fake news, desinformação e o risco de censura oficial
Mendonça sustenta que a desinformação deve ser compreendida como sintoma de crises sociais e institucionais — não como sua causa. Reprimir discursos falsos com leis penais ou decisões judiciais apressadas pode, segundo o ministro, agravar a desconfiança pública nas instituições.
“Mentir é eticamente reprovável, mas não necessariamente é crime. Cabe ao Judiciário avaliar, com base na lei, quando há dolo específico e dano claro e iminente.”
Essa abordagem é corroborada por Jeff Kosseff, autor de The Twenty-Six Words That Created the Internet, e Desidério Murcho, filósofo português, para quem a liberdade de expressão exige tolerância às ideias erradas, para que possam ser contestadas publicamente e não reprimidas por coerção estatal.
Crime de Estado contra a Liberdade de Imprensa: conceito e efeitos
No contexto brasileiro contemporâneo, diversos juristas e jornalistas têm identificado práticas reiteradas do Judiciário que configuram o que se denomina “Crime de Estado contra a Liberdade de Imprensa”. Trata-se da utilização abusiva de instrumentos judiciais — como inquéritos sigilosos, censura prévia, ordens de remoção e bloqueios extrajudiciais e judiciais baseados em processos fraudulentos, alguns resultantes de conluio entre membros do Ministério Público e Magistrados — para restringir o trabalho da imprensa, perseguir profissionais da comunicação e controlar o debate público.
Essa prática compromete:
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O princípio da publicidade dos atos estatais;
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O controle social dos poderes públicos;
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O direito fundamental à informação;
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O pluralismo político e ideológico;
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A própria legitimidade do Estado Democrático de Direito.
Organizações internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e a Relatoria da ONU para a Liberdade de Expressão já alertaram que o uso judicial de medidas restritivas contra a imprensa configura violação sistemática de direitos humanos e pode ser objeto de sanção internacional.
Limites do STF e fortalecimento do Parlamento
O voto de Mendonça também defende que o Poder Legislativo deve assumir a responsabilidade constitucional pela regulação da internet, plataformas digitais e liberdade de expressão, sob pena de o Judiciário substituir indevidamente o espaço do debate democrático.
“A autoridade para decidir determinadas questões precisa ser fragmentada entre diferentes atores.”
Essa concepção retoma a tradição do constitucionalismo democrático, em que cortes não devem legislar em substituição ao povo e seus representantes, sob risco de deslegitimação institucional e ruptura do pacto republicano.
*Carlos Augusto, jornalista e cientista social, diretor do Jornal Grande Bahia.
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