Democracia como valor universal | Por Juarez Duarte Bomfim

Qual a melhor forma de governo? Essa clássica pergunta que preocupa desde sisudos filósofos políticos até o homem simples do povo tem, hoje em dia, uma resposta (quase) unânime: democracia. Esta é a melhor forma de governo para todos, muitos ou a maioria – se assim não for, relembremos a famosa frase de Sir Winston Churchill: “a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido tentadas de tempos em tempos”.

O certo é que o prestígio que adquiriu esse regime político caracteriza a democracia como valor universal – ahistórico, atemporal, uma causa pétrea da condição humana.

Mas nem sempre foi assim. O prestígio da democracia como uma boa ou a melhor forma de governo é historicamente recente. Na Antiguidade clássica a derrota militar da Atenas democrática para os espartanos foi considerada a derrota da democracia, incapaz de conduzir “o povo à vitória”; na Roma Antiga houve o predomínio dos regimes de autocracia ou tirania; na Idade Moderna a preponderância do Absolutismo.

Já na primeira metade do século XX, camadas enormes da população mundial foram seduzidas pelos extremismos. Os (poucos) sinceros democratas eram considerados ingênuos, inocentes úteis ou perigosos. As ideologias nazi-fascista e comunista polarizavam o cenário político. Os avós da minha geração eram todos – ou quase todos – integralistas ou comunistas…A vitória dos Aliados na Segunda Grande Guerra significou a vitória da democracia, com reflexos inclusive no Brasil. As grandes manifestações de rua que receberam os legionários brasileiros na volta da campanha da Itália, logo se transformaram em mobilizações em prol do restabelecimento da democracia, e apressou a queda da Ditadura Vargas.

O cientista político e senador vitalício da república italiana Norberto Bobbio (1909-2004) nos incita a mudar radicalmente a premissa filosófica. Democracia não deve ser mais analisada como uma boa ou má forma de governo. Devemos retirar qualquer axiologia (valores) do conceito de democracia e redefini-la.

Redefinir a democracia. Eis o desafio.

Partindo do principio de que democracia significa “governo de todos, de muitos ou da maioria” em contraposição a “governo de um só, de poucos ou da minoria” – simplificadamente podemos dizer que democracia é o “governo do povo” .Mas vejam só… governo do povo. O que aprendíamos no ensino fundamental que democracia é “governo do povo, pelo povo e para o povo” é uma generalização imprecisa.

Regimes ditatoriais podem se arvorar a ser “pelo povo e para o povo”. Assim eram os “déspotas esclarecidos”; assim homens de boa fé iludidamente consideram o regime castrista em Cuba.

Em sendo o governo do povo, Bobbio propõe compreender a democracia como um método: o método de verificação da vontade do povo, isto é, de todos, de muitos ou da maioria.

Todo método necessita de regras. As regras do “jogo democrático”. E o jogo democrático, como todo jogo honesto, deve ter as regras estabelecidas antes do juiz apitar o início da partida, pois “a regra é clara” – já dizia um prolixo cronista esportivo. Dessa maneira, democracia passa a ser vista como um conjunto de regras de procedimento para a comprovação da vontade coletiva.

Portanto, democracia não é boa nem ruim, é um método. O que os homens vão fazer com ela…

São três as regras do método democrático. Dessas três derivam-se outras três, somando-se seis.

A primeira regra básica é que as decisões devem ser tomadas por maioria. Esse é um critério quantitativo. Significa que quanto mais cidadãos/eleitores participem do processo, mais democrático será o regime político.Aliás, essa era a crítica que se fazia à democracia ateniense: excluía da tomada de decisões a maioria numérica, ao deixar de fora as mulheres, os metecos (estrangeiros) e os escravos. Só quem tinha direito de votar e ser votado era o homem adulto ateniense. Nesse quesito a democracia brasileira é imbatível: são 138 milhões de eleitores que votam diretamente para seus representantes, pois ao longo do século XX foi sendo ampliado o direito ao voto no Brasil. Primeiro com a inclusão do voto das mulheres (1932); continuando com a extensão do direito aos analfabetos (1985); a partir de 1988 o voto é facultado aos jovens de 16 anos.

A segunda regra do jogo democrático é o direito ao voto igual. Isso que hoje é uma obviedade nem sempre foi óbvio assim… Na Constituição do Império Brasileiro (1824) o voto era censitário e elitista, vinculado a privilégios econômicos, como a renda líquida anual dos pouquíssimos afortunados. Voto igual é quando o voto do peão vale o mesmo que o voto do patrão, assim como o voto feminino e masculino, do adulto e do menino.

A terceira regra do jogo democrático estabelece que as decisões sejam tomadas por maioria. O método pode ser de maioria simples, expressa por um coletivo humano na forma de: ““quem é a favor de tal proposição levante as mãos”…”; ou métodos mais sofisticados de maioria de 3/5; 5/7… – os mecanismos estabelecidos para as emendas constitucionais, por exemplo.

Dessas três regras derivam-se outras três.

A quarta regra determina que democrático será o regime onde alternativas político-partidárias diversas se apresentem para as consultas eleitorais periódicas. Pluralismo partidário. Nesse quesito o Brasil também é campeão. São 30 os partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral em pleno funcionamento. Aí não se discute se são legendas de aluguel ou de araque. Estão autorizados a funcionar e participar eleitoralmente.

A quinta regra democrática é de liberdade de escolha entre as diversas alternativas que se apresentam nas eleições. Este princípio está ameaçado quando ocorre algum constrangimento, intimidação ou coação ao eleitor, como no caso dos morros cariocas, onde o narcotráfico tenta impor os seus candidatos a uma população atemorizada. A tentativa de compra de votos, que é ilegal, atenta contra esta regra.

A sexta e última regra do método democrático fundamenta-se na igualdade de oportunidades dos partidos e candidatos. Na possibilidade da minoria poder tornar-se maioria nas consultas eleitorais periódicas. Poderia até chamar-se de “”Lei Enéas para presidente”. A cada sufrágio, o sistema eleitoral brasileiro tem-se aperfeiçoado para assegurar esse princípio, pelo menos formalmente. Evitar ou limitar o uso do poder econômico nas eleições é a meta.

Bem, a democracia tem suas dificuldades, suas limitações. São obstáculos para fazer valer a vontade da maioria. Norberto Bobbio enumera alguns desses “inimigos da democracia”.

Inimigos da democracia

O primeiro inimigo da democracia são as vastas territorializações. O Brasil, gigante pela própria natureza, vive a impossibilidade da realização da democracia direta, como na Atenas de Péricles. Na democracia grega as decisões eram tomadas em assembléias na ágora (praça pública) onde todos os cidadãos podiam participar, tanto com a palavra quanto com o voto. A democracia na atualidade é indireta, representativa, e é aí que mora o perigo… Pois o candidato eleito acredita que o voto do eleitor foi lhe concedido na forma de um cheque em branco e o mandato é exclusivamente seu, e não uma delegação, uma representação popular. Dessa maneira tende a aproveitar do cargo em benefício próprio ou de detentores do poder econômico que financiaram as suas campanhas.

O segundo inimigo da democracia é decorrente do primeiro: a burocratização crescente do aparelho estatal, que faz com que os dirigentes (burocratas) dessa instituição representativa exerçam poder “sobre” o povo e não –o poder “para” o povo. Isto é, não governem a serviço desse mesmo povo.

O terceiro inimigo é o tecnicismo das decisões a tomar. Numa sociedade cada vez mais complexa, questões da maior importância como políticas monetária, fiscal, tributária, energética, de saneamento, de transporte, habitação, saúde, educação são cada vez mais técnicas, especializadas. E o detentor do saber concentra em suas mãos o poder decisório. Saber é poder. Essa é a máxima platônica – mais atual do que nunca.

O quarto inimigo da democracia é a massificação da sociedade civil, que tende a homogeneização, uniformização, sufocando uma qualidade democrática que é o pluralismo político.

O quinto e mais importante inimigo da democracia é a dificuldade de extender a participação democrática até a área dominada pelo poder econômico. A impossibilidade de controlar democraticamente, a partir de baixo, o poder econômico. As grandes decisões de política econômica são tomadas autocraticamente, na calada da noite.

Bobbio pergunta: seriam, por acaso, as condições historicamente determinadas ou as condições objetivas que dependem da natureza mesmo das decisões em matéria econômica, a pressupor um poder autocrático? ”

Em assim sendo, o princípio básico da democracia, que é a igualdade (isonomia), está irremediavelmente comprometido. A igualdade existe da porta da fábrica para fora, onde patrões e peões são formalmente iguais. O mesmo não acontece da porta da fábrica para dentro. E é exatamente neste terreno, no terreno do controle democrático do poder econômico, que se vence ou se perde a batalha por uma real democracia.

 

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Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

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