Com alegria e satisfação Raimundo Irineu Serra pôde escrever o que lhe foi solicitado, porque aprendera, e o maior dos méritos foi ele ter vencido a mentira, a ilusão, ao fazer da mentira, verdade.
Hino 109. Tudo, tudo
Tudo, tudo Deus me mostra
Para mim reconhecer
Tudo, tudo é verdade
E eu não posso esquecer.
A minha mãe, que me ensina
Que me entrega este poder
Tomo conta e dou conta
E eu não posso esquecer.
Sigo a minha viagem
Dentro desta primozia
Tudo, tudo é verdade
No reino da soberania.
No dia 15 de dezembro de 1892, nascia em São Vicente de Férrer, no Maranhão, o menino que chamar-se-ia Raimundo Irineu Serra. Seus pais, Sanches Serra e Joana Assunção Serra, eram oriundos de família humilde, descendentes de escravos que viviam do trabalho de cultivo da terra.
Lá pelos seus 19 anos o jovem Irineu, junto com seu primo Casemiro, foram a uma festa de tambor-de-crioula e se envolveram em uma briga de rapazes. Aqueles dois rapagões de quase dois metros de altura ‘botaram todo mundo para correr’, derrubaram porta e com um facão saíram cortando tudo quanto era punho de rede da casa.
Dessa travessura de juventude ele foi severamente disciplinado pelo seu tio e padrinho Paulo Serra, com uma dura peia de cipó. Duplamente envergonhado, pelo que tinha feito de malcriação e pela surra que tinha levado do tio que o criara como um filho, decidiu ganhar a vida longe da sua terra natal. Viajou a São Luís do Maranhão e no porto da cidade viu um navio alistando gente para ir para o Amazonas.
Em 1912 Irineu Serra foi de navio até Belém do Pará, onde trabalhou como jardineiro para conseguir dinheiro e seguir viagem até Manaus. Na capital amazônica, juntou-se a um grupo de nordestinos que iam para o Acre, território que sofria forte migração nordestina, impulsionada pela seca que castigava o nordeste desde 1877, para trabalhar na exploração do látex (borracha).
Chega a Brasileia, onde tinha notícias de estarem conterrâneos seus, os irmãos Antônio e André Costa, e se instaura na região da tríplice fronteira (Brasil, Peru e Bolívia). Irineu conseguiu o seu primeiro emprego como seringueiro, na colocação de um rico seringalista.
Na sua magistral obra, “No brilho da Lua Branca”, Saturnino Brito do Nascimento nos narra um singular episódio da formação do caráter do futuro mestre. Impressionado com o seu tamanho e força o patrão lhe saúda:
— Puxa, que homem forte
Disse o homem alegremente
Me dizes de onde tu vens
Pois receio certamente
Que além de muito forte
Deves ser inteligente.
Irineu Serra se declara maranhense, e o seringalista observa:
— Eu logo vi
Com os maranhenses que tratei
Burro nenhum conheci.
— E agora para confirmar
O que estou a te dizer
Pois tenho quase certeza
Mas você é quem vai responder
Me diga aí seu moço
Sabe ler e escrever?
E Saturnino Nascimento continua a sua rica narrativa em cordel:
Coitado do Irineu
Ficou todo embaraçado
Sequer em banco de escola
O mesmo havia sentado
E agora o quê responder
Mediante o apanhado?
Falando consigo próprio
Foi logo pensando ligeiro
E se o homem não conhece
Do meu Maranhão brasileiro
Gente que seja burro
Não é justo eu ser o primeiro
Aí nesse embaraçado
Dentro deste pensamento
Disse: – eu sei ler sim senhor
Com grande constrangimento
Pois não era o que ele fazia
Mentir e ter fingimento.
Aqui acontece um fato marcante para a constituição da índole do vindouro professor:
Logo que pegou o caminho
Rumo à colocação
Foi se batendo consigo mesmo
Fazendo a reflexão
A respeito da mentira
Que dissera ao patrão.
– E agora se o homem
Me chamar para escrever
Para ele algumas linhas
E o que é que eu vou fazer?
De repente veio o toque
– Não sei, mas vou aprender.
Encomenda uma “Carta de ABC” ao noteiro do seringal, que é o funcionário responsável pelo controle do volume de produção, e lhe pede um segundo favor:
Com um papel de embrulho na mão
Irineu pediu ao noteiro
– Antes do senhor sair
Me escreve aqui primeiro
Bem em cima deste papel
O meu nome completo e inteiro.
Raimundo Irineu Serra
Sem nenhuma letra faltar
Quando o homem saiu
Já se pôs a rabiscar
O seu nome ali escrito
Procurando imitar.
A primeira tentativa
Ficou meio lá e meio cá
Mas com a continuação
Começou a melhorar
E toda folha de papel
Lutou até completar.
Quando o providencial noteiro retornou com a “Carta de ABC”, um terceiro favor foi-lhe pedido:
— Muito obrigado senhor
Sou grato de coração
Agora peço ao senhor
Que me dê uma lição.
E assim, só com uma ou poucas lições, nas visitas periódicas que o “professor” noteiro fazia ao seringal, Irineu Serra aprendeu a ler, como autodidata. Até que um dia
… o dito patrão
Aquele mesmo que exaltara
O povo do Maranhão
Lhe chamou e lhe pediu
– Me faz uma anotação?
Como ele aprendera
Se sentiu bem à vontade
Assim mantendo o padrão
Da sua integridade
Até mesmo da mentira
Teve que fazer verdade.
Com alegria e satisfação Raimundo Irineu Serra pôde escrever o que lhe foi solicitado, porque aprendera, e o maior dos méritos foi ele ter vencido a mentira, a ilusão, ao fazer da mentira, verdade.
Tomo conta e dou conta
E eu não posso me esquecer.
O livro virtual (pdf) O Jardim de Belas Flores. O hinário O Cruzeiro Universal do Mestre Raimundo Irineu Serra comentado por Juarez Duarte Bomfim encontra-se disponível em:
http://portalsantodaime.com.br/materia_especifica.php?idmateria=1
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