Ayahuasca e reabilitação de presidiários: Entrevista com Edilsom Fernandes, presidente da Barquinha de Ji-Paraná, Rondônia | Por Juarez Duarte Bomfim

Padrinho Fernando (Edilsom Fernandes) e Madrinha Zeza (Maria José)
Padrinho Fernando (Edilsom Fernandes) e Madrinha Zeza (Maria José)

“A Ayahuasca, ela mostra, mas se a pessoa tem seus defeitos, se você não quer se corrigir, você não vai se corrigir, ela precisa querer, é preciso se esforçar, exercitar, para encontrar aí uma prática mais fiel” (Edilsom Fernandes).

Padrinho Fernando (Edilsom Fernandes) e Madrinha Zeza (Maria José)
Padrinho Fernando (Edilsom Fernandes) e Madrinha Zeza (Maria José)

Entre os anos de 2012 e 2016, uma profícua experiência foi desenvolvida com o uso de Ayahuasca, através de um convênio entre a ONG Acuda e a instituição religiosa ayahuasqueira Lar de Frei Manuel (Barquinha de Ji-Paraná, Rondônia). Os apenados do regime fechado ou semiaberto que eram assistidos pela Acuda, passaram a participar das cerimônias religiosas da Igreja ayahuasqueira, de livre e espontânea vontade.

A Acuda (Associação Cultural e de Desenvolvimento do Apenado e Egresso) desenvolve atividades de reabilitação de presidiários do Complexo Penitenciário de Porto Velho – Rondônia. São traficantes de drogas, estupradores, pedófilos e homicidas.

A Igreja de Daime (Ayahuasca) de Ji-Paraná denomina-se ‘Centro de Regeneração Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel’, entidade filantrópica sem fins lucrativos, juridicamente constituída. Pratica a Doutrina Espírita Cristã fundada por Mestre Daniel Pereira de Mattos – a Barquinha.

Com autorização do Juiz Corregedor dos Presídios, pequenos grupos e, posteriormente, de 10 a 20 apenados passaram a frequentar as cerimônias religiosas uma vez ao mês ou mais, após uma viagem de 360km. Eles viajavam sem nenhum tipo de escolta. Só os presos, a psicóloga e os diretores da ONG Acuda.

Por sua originalidade, este Convênio interinstitucional de ministrar Ayahuasca para presidiários, teve uma grande repercussão na imprensa nacional e internacional. Todavia, a superexploração midiática acabou gerando resistência dentro do próprio Poder Judiciário de Rondônia, que o havia autorizado.

Em 2015, os presos que eram liberados pelo Juiz da Vara de Execuções Penais, para irem às cerimônias religiosas em Ji-Paraná – Rondônia, foram impedidos pela Justiça. A Justiça impediu que os presidiários continuassem envolvidos no promissor projeto da reintegração familiar e social com a utilização de Ayahuasca. Considera-se que o principal motivo foi a repercussão negativa — entre os inimigos da Ayahuasca e familiares de vítimas —  após reportagem televisiva apelativa e tendenciosa.

Com essa proibição, o Juiz Titular da Vara de Execuções Penais (VEP), que liberava os presos, solicitou um relatório que apresentasse os depoimentos dos encarcerados, bem como um texto sobre a parte científica da Ayahuasca, a fim de que pudesse anexar no processo, que estava transitando no Tribunal de Justiça, sobre a questão do uso do Daime (Ayahuasca) para presidiários.

No documento entregue ao Poder Judiciário, a Profa. Hercília Junqueira, responsável por este, anexou uma entrevista com o presidente da ‘Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel’, a Barquinha de Ji-Paraná, Rondônia, o sr. Edilsom Fernandes da Silva, realizada em 18.05.2015.

A Profa. Dra. Hercília Junqueira (UNIR), considera que “a inserção da entrevista com o Presidente da Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel, o Sr. Edilson Fernandes da Silva, mais conhecido como Fernando ou Padrinho, irá proporcionar a todos a compreensão de como se processa esse ritual filosófico-religioso-espiritual do Daime”.

Entrevista de Edilsom Fernandes da Silva à Profa. Dra. Maria Hercília Rodrigues Junqueira

— Qual o seu nome e a instituição que o Senhor está representando?

— Meu nome é Edilson Fernandes da Silva, eu sou presidente do Centro de Regeneração Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel. É um centro espírita, apostólico, cristão, universalista que faz uso da Ayahuasca (Daime) como um instrumento da nossa religião, para facilitar a compreensão espiritual dos nossos trabalhos, que são incorporação ou manifestação extracorpórea e expansão da consciência.

— Quando a pessoa toma o Daime ou Ayahuasca e que há essa expansão da consciência, o que acontece na vida dela?

— Bem, cada caso é um caso. Cada pessoa tem suas experiências pessoais próprias, cada indivíduo tem sua vivência, sua experiência pessoal. O que a Ayahuasca faz é ampliar os sentimentos, as percepções, obviamente, o conteúdo dessa pessoa. Tudo que ela viveu de experiências boas ou ruins, ela vai revivenciar, “reverificar”, reexaminar e aí encontrar algumas explicações para os seus traumas, das suas dificuldades, das suas relações e também encontrar maneiras próprias para encontrar uma solução na sua vida, se quer.

Porque a Ayahuasca não lhe dá nada, ela simplesmente mostra aquilo que você tem, aquilo que está guardado, aquilo que está escondido, que você não revela, às vezes, é aquilo que você nem lembra, está guardado no seu íntimo, no seu âmago, no seu inconsciente. E ele traz à tona.

Agora, o que você vai fazer disso, o que a pessoa vai fazer disso, é de cada um, depende da cultura, depende da capacidade, depende do conhecimento, depende de todo conteúdo experencial que ela tem.

Então, a Ayahuasca age de diversas formas. O interessante é notar que a Ayahuasca é um instrumento, um instrumente para amplificação, ampliação da consciência. Isso não quer dizer que a pessoa vai ou não vai melhorar. Cada pessoa vai agir em conformidade com o que quer, com o que acha que deve.

O professor ensina, o aluno faz a sua tarefa se quiser, não é obrigado. A Ayahuasca é um professor, ele mostra: existe isso na sua vida, existe isso, existe aquilo, você agiu assim, você agiu assado, você deve agir de forma diferente. Agora, as pessoas têm que tomar as suas próprias decisões. A Ayahuasca não toma decisão por ninguém, ela mostra que a pessoa precisa tomar decisões, mas se a pessoa vai tomar ou não, e qual vai tomar, ela não interfere. Depende de cada um.

— Quando a pessoa toma a Ayahuasca ou o Daime e há essa ampliação da consciência, ela tem essa possibilidade de crescimento e de mudança de vida?

— Sim, a possibilidade existe. Como eu disse antes, um aluno vai na escola, se ele vai se aplicar nas tarefas, estudar as matérias, é com cada um. Os pais não podem obrigar os filhos a se aplicar na matéria, o professor não pode obrigar, a instituição escolar não pode obrigar. É de cada um.

Agora, o crescimento como é pessoal, é individual, requer também esforço, sacrifício. Como qualquer outra religião, é preciso prática. Há uma instrução, há um ensino. A Ayahuasca abre um campo de compreensão mais amplo. Existe toda uma doutrina que faz parte da religião, o instrumento é para ampliar, a religião é para induzir. Se a pessoa vai fazer ou não…

Uma coisa que nós podemos levar em conta é que a Ayahuasca é como a água que se bebe, quem vai processar, quem vai metabolizar a água é o organismo. Se o organismo está deficiente, essa água não será bem digerida, essa água não será bem utilizada pelo órgão defeituoso. Mas, insistentemente a água vai procurando o seu lugar, assim também é a Ayahuasca.

A Ayahuasca, ela mostra, mas se a pessoa tem seus defeitos, se você não quer se corrigir, você não vai se corrigir, ela precisa querer, é preciso se esforçar, exercitar, para encontrar aí uma prática mais fiel. Porque prática traz perfeição, prática traz coesão, a frequência, a constância é que vai dar alicerce, fundamentar a ideia.  A indução é a religião, o Daime é simplesmente a ampliação, agora a indução fica por conta dos Salmos, dos Hinos, das palestras, das doutrinas, dos ensinamentos, do ensino da conduta moral, aí é parte. A religião faz a parte da doutrina moral, doutrina espiritual, ensina a se conduzir, mas se a pessoa vai se conduzir ou não, é com a pessoa.

E a Ayahuasca amplia a percepção, você aumenta as suas sensações, aumenta a sua possibilidade, aumenta os seus sentidos, o paladar, tato, olfato, audição, visão e, também, aumenta a cognição. Ele faz com que a cognição fique mais ágil e mais consistente. Mas se a pessoa vai usar ou não, não é com a religião, não é com a instituição, não é com a sociedade, é com a pessoa, é com o indivíduo. Cada indivíduo tem que tomar conta por si só.

— Pelo que o senhor colocou, seria importante que a pessoa desse continuidade no uso da Ayahuasca para poder haver um….

— A Ayahuasca é um instrumento. É interessante que a pessoa dê continuidade, mas não é extremamente necessário. É como eu digo assim: é necessária a continuidade, mas não é primordial. O carro é necessário para andar, mas se a pessoa tem pernas, ela pode andar a pé. Então, é necessário sim.

A Ayahuasca é necessária para que a pessoa, dentro da nossa religião, dentro do contexto religioso que nós trabalhamos, ela é necessária porque ela facilita, é um instrumento, mas não é primordial, se a pessoa não quer beber, não precisa. “Ah, o desenvolvimento será mais lento?” Talvez. Depende do conteúdo existencial de cada um, depende do fator experimental, existencial de cada um.

Há pessoas que tem mais facilidade em perceber as coisas e há pessoas que têm mais dificuldade. Tem pessoas com mais facilidade de aprendizado, outras com mais dificuldade. Tem pessoas com mais facilidade com relacionamento, outras mais dificuldades.

A Ayahuasca amplia a capacidade de viver em comunidade, mas se a pessoa quer ou não, só depende dela. Mas seria interessante que a pessoa desse seguimento, como qualquer estudo. A pessoa para chegar à universidade, tem que passar pelo ensino fundamental, ensino médio, fazer toda uma escada, tem que subir uma escala. Para chegar no topo tem que subir a escada. Ninguém dá saltos. A natureza não dá saltos e a inteligência também não dá saltos. Isso é coisa de ficção científica.

A realidade é que a pessoa tem que exercitar, cada passo, cada exercício é um degrau que ela vai adquirindo. Então, constância e a frequência seriam interessantes para a pessoa alicerçar, compreender com mais profundidade, porque não é o que se fala, é o que se entende. Eu sou responsável pelo que eu falo, mas não sou responsável por aquilo que as pessoas entendem.

— Há algumas comunidades que usam a Ayahuasca, que as pessoas que vão participar, elas têm que tomar o Chá. No seu espaço, na sua Igreja as pessoas que vão, elas têm que tomar também?

— Não, não. Porque nós somos uma Igreja. Nosso Centro é de Regeneração Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manuel, é uma Igreja.  As pessoas podem ir assistir os trabalhos. Como é uma religião, tem o rito muito parecido com o rito católico apostólico romano, cristão, então, não há necessidade nenhuma da pessoa beber o Ayahuasca, nem os membros que frequentam são obrigados a beber. Bebem aqueles que querem. Obviamente, como as pessoas compreendem que é um instrumento e gostam de ter expansão, usam.

Eu tenho conhecimento que há algumas entidades que se você não beber, você não participa, mas é num critério de cada entidade. E tem um motivo para isso, porque é o rito, devido ao rito ser um rito diferente, de pouca compreensão, que a pessoa só poderia compreender melhor usando Ayahuasca, então, há esse critério que só poderia assistir o rito, o trabalho espiritual, se beber.

Eu não tenho nada contra isso, mas é minha visão. A minha postura é diferente porque eu também tenho um rito diferente. O meu rito é extremamente acessível e muito comum. O nosso rito é muito parecido com o da igreja católica, apostólica, romana e ortodoxa. Então, a sociedade tem uma facilidade de compreender o rito, não tem nada de estranho, existem algumas coisas diferentes, mas não estranhas.

Já nos outros ritos onde há a necessidade da pessoa beber para assistir, é uma sociedade fechada, é uma sociedade que não é secreta, mas é discreta. Nessa sociedade, só podem ir às pessoas que são convidadas ou apresentadas por membros de lá.

No nosso caso não é isso. Nossa casa é uma porta aberta e a pessoa entra a hora que quer e sai na hora que quiser. Só é restrito a saída das pessoas que bebem a Ayahuasca (Daime): só podem sair após o término do rito, se o dirigente, no caso eu, fizer uma vistoria para ver se a pessoa tem condições de sair, quando é novato, quando vem pela primeira vez ou que vem desacompanhado.

Mas geralmente, quando a pessoa vem desacompanhada ou vem pela primeira vez, nós temos o critério de muitas vezes não ministramos o Daime para essa pessoa e quando administrar, com muito cuidado, bem pouco, para que a pessoa possa se sentir à vontade, confiar naquilo que está sendo trabalhado, ver o que ocorre com as pessoas que já bebem, para então adquirir confiança e aí frequentar mais tranquilamente.

— Já tem um tempo que os presos de Porto Velho têm vindo participar desse ritual. Como você tem visto esse trabalho, essa participação desses homens?

— O que ocorre é o seguinte: nós somos um centro de caridade. Quando nós fomos procurados para dar assistência a esses irmãos, prontamente aceitamos porque eu tenho um amigo policial que diz assim: “nós combatemos o crime; os centros espíritas e as religiões, previnem”.

Então, são irmãos que já passaram pelo crime, conhecem o crime, conhecem também a mão pesada da sociedade e a mão pesada do judiciário. São pessoas que são preconceituadas porque mesmo que mudem, mesmo que acreditem que devam se transformar em pessoas dignas e pessoas que possam voltar à sociedade, ou sejam, ressocializadas, existe muito preconceito, existe muita visão turva, muita visão tacanha.

Nosso Centro tem por obrigação fazer a caridade, porque Jesus, como nós somos cristãos, Ele atendia todos. Aqueles que eram marginalizados eram recebidos por Jesus como pessoas dignas que precisavam de ajuda e que deviam ser reinseridas na sociedade.

Meu pensamento é o mesmo, nós vemos os aprisionados, os egressos como pessoas que precisam ser reconhecidas como transformadas, dando a eles uma oportunidade.  E também reinserindo a família dele na sociedade, na religião, e eles na família.  Porque não é só reinserir o preso, o aprisionado, o egresso na sociedade. É reinseri-lo na família também. Muitos não são mais aceitos na família, por conta da pena que sofreram. A falta de presença da família causou o trauma, causou a distância e nós temos que reaproximar essas pessoas.

Então, eu vejo que há uma necessidade do Judiciário facilitar, já que nós queremos combater o crime e, antes de combater, evitá-lo, dando possibilidade da sociedade conviver uns com os outros com dignidade. Se nós não fizermos isso, eles serão sempre criminosos. Nós não queremos sempre criminosos, nós queremos pessoas reabilitadas.

Porque existem duas situações: existem os criminosos que estão presos e os criminosos que estão soltos. Têm criminosos que são condenados e criminosos que não estão condenados; tem criminosos que cometeram um ou dois assassinatos e tem outros que cometeram milhões de assassinatos.

Quem rouba um Hospital, rouba a Saúde Pública, quem rouba a Educação, ele é muito mais criminoso do que aquele que roubou uma galinha, roubou uma loja. O crime é muito maior. E, no entanto, às vezes não estão aprisionados, muitas vezes não são considerados nem criminosos. Diante da sociedade eles são considerados criminosos, mas muitas vezes o Judiciário não tem ainda elementos para incriminá-los.

Pensando assim, quem deveria ser mais ressocializado, quem poderia ser reabilitado na sociedade, o criminoso que rouba uma loja, roubou galinha, roubou um carro ou quem roubou milhões e milhões da Saúde, das Escolas, das crianças?

Então, eu acredito que as pessoas podem ser modificadas, mas é preciso que a gente veja as coisas sem hipocrisia, que as pessoas vejam as coisas com dignidade. Eu prefiro trabalhar com a pessoa que assaltou banco, que roubou carro, do que lidar com aquele que roubou milhões e milhões de uma determinada função dentro da sociedade e é exibido com aplauso.

Aquele que rouba milhões, sempre acha que vai estar por cima da lei e é ele quem pré-conceitua os presos. Ele que pré-conceitua e quer que o ladrão de galinha, ladrão de carro, o ladrão de relógio fique preso, porque aí ocupa o espaço que ele poderia ocupar.

Pensando nisso, eu acredito que os presos têm que ter oportunidade e, também o Judiciário, tem que lembrar duas coisas importantes: há risco de o preso fugir dentro do Presídio, há risco dos presos se matarem dentro do Presídio e, há risco do preso fugir de qualquer outro sistema, de qualquer outro trabalho ou de qualquer outro projeto. E o risco que nós devemos correr. O risco que nós temos que correr é tentar ressocialização. Vão todos ser ressocializados? Não serão todos. Mas se nós tivermos o pensamento de tirar 1 de 100, é um a menos. Porque quando a gente tira um, tem 50 ou 100 entrando, mas se a gente tirar 1, não é 51 e nem 101. Nós temos que pensar que cada um é uma vitória. Se estão entrando 50 ou 100, o nosso dever é tirar 1, 2, 10, 20, 50. Não importa. O nosso papel é ressocializar.

Porque esses que já passaram pelo crime, quando ressocializados, eles têm muito mais dignidade do que os outros que ainda não cometeram. E quem cometeu crime e sofreu a pena, ele sabe o peso da Justiça. E aquele que não cometeu pensa em cometer, porque pensa que vai escapar, porque ele não sabe o peso da Justiça.

O preso deve ter oportunidade, a sociedade deve dar oportunidade para o preso, porque ela que faz o criminoso, ela produz. Porque são nas pessoas soltas que ela produz os criminosos. Porque o preso no Brasil, ele tem pouca ocupação, ele é pouco exigido profissionalmente, ele é pouco preparado. Quando ele sai, sai sem preparo algum e aí ele volta com certeza para a marginalidade.

Isso é uma mazela da sociedade. Na sociedade, quem tem curso superior tem vantagem de ficar em cela diferenciada. Sendo que quem não tem curso superior, não tem instrução, e se não tem instrução, ele tem mais probabilidade de errar do que quem tem.

Na minha visão isso poderia ser ao contrário: a quem mais é dado, mais é cobrado. Quem mais conhece de lei deveria sofrer uma punição mais severa, para que assim equilibrassem as coisas. Mas eu não sou nenhuma pessoa que possa modificar o Sistema, mas o Sistema, ao meu ver, contribui: se não forma o marginal, contribui com a permanência no crime. Isso é uma mazela de todos nós.

Nós temos que saber que nós provocamos a criminalidade mantendo esses presos sem atividade, sem oportunidade e sem reabilitá-los, porque eles vão sair e amanhã podem roubar a minha casa, sua casa, e a casa de outro porque nós não damos as mãos a ele e não habilitamos ele para que seja uma pessoa diferente.

Se você não dá recursos de estudo para o seu filho, ele pode procurar outro caminho, se você não dá recursos pra ele viver, ele vai procurar outro caminho. Assim também são os nossos irmãos aprisionados, se você não der recurso para ele, ele não vai sair do crime. Se dando recurso está sujeito a não sair (do crime), não dando ele com certeza não sairá.

— Uma última pergunta, com esses presos que o senhor tem trabalhado o senhor percebeu algum movimento interno de crescimento, de mudança?

— Com certeza, a gente vê na fisionomia, na postura. Alguns com mais renitência, com mais dificuldade e outros já bem adiantados. Mas uma coisa é você preparar, a outra é você dar condição. Uma coisa é você instruir. Agora se a pessoa vai praticar, depende de um campo.

No nosso caso, nós estamos auxiliando o Projeto Acuda com o intuito de dar toda a possibilidade moral, assistência, recebê-los como irmãos, com dignidade, mostrando a eles que, apesar de tudo que já fizeram, estão pagando por isso. Vão ser recebidos como pessoas dignas para que eles possam manter a dignidade.

Eles recebem o que não têm. Se eles não recebem dignidade, eles vão receber de nós. Se eles não têm carinho, têm que receber de nós. Se eles não têm hombridade, tem que receber de nós. Se eles não têm conceito, também vão receber de nós. Recebendo, daí em diante nó vamos ajudá-los a serem reinseridos na sociedade.

Não adianta só ensinar, tem que também dar um lugar para que possa ser praticado, porque se você forma um engenheiro e não dá uma obra para ele, não vai adiantar nada. Se você prepara um professor e não prepara uma classe, um aluno para ele, não adiantou nada. É preciso preparar e dar para ele condições e um local para trabalhar e executar tarefas, porque senão será como aquele que muito conhece e pouco faz, muito fala e pouco faz.

Assim também é na sociedade: se você ensina o preso a ter dignidade, dá a ele condições de trabalho, mas não dá a ele condições de tarefa e um local para trabalhar…

E a sociedade tem que aprender isso, ela tem que aprender que o aprisionado é um ser humano, que ele tem qualidades e defeitos. Tem também habilidades, que deve ser explorada, no bom sentido, tem que ser usada a favor.

Quanto o governo paga em obras, sendo que tem muitos aprisionados que têm habilidades para fazer aquelas obras, para quitarem a sua dívida com a sociedade e quitar moralmente, evitando aí que a sociedade pague os custos monetários altíssimos, sendo que têm os recursos dentro dos presídios.

Essa é minha visão, eles têm melhorado muito, mas só isso não basta. O fato deles estarem melhorando, frequentando o Centro Espírita, como o nosso, espiritualista, como o nosso, e outras religiões, com certeza alguns melhoram, mas se eles vão continuar melhores é difícil de dizer. Como um irmão aprisionado me disse: “Irmão Fernando (Edilsom Fernandes), sair do crime não é difícil, difícil é permanecer fora dele”.

Por que? Porque quando ele sai, ele procura não entrar mais, mas ele é procurado pelos outros. Se ele não tem recursos, se ele não tem condição, sua família passando fome, ele entra em desespero e acaba voltando para o crime porque não tem opção de viver, porque a única coisa que ele sabe fazer é o crime.

Ele volta porque não tem habilidade para outra coisa. Enquanto a sociedade não der oportunidade para ele…. Então, nesse ponto eu culpo a sociedade, eu aponto a sociedade como a autora do retorno ao crime. Porque há o preconceito na sociedade e ao impedir a ressocialização, impedindo que ele volte ao meio da sociedade, ela está dando a ele a oportunidade de voltar ao crime e, às vezes, até empurrando ele para o abismo.

Eu quero continuar no Projeto Acuda, eu acredito na transformação do ser humano, mas também eu preciso que o Judiciário, que a sociedade mostre a sua boa vontade. Como diz um amigo meu: “O papel do judiciário é punir, é julgar”. O meu é reabilitar, do preso é se abrir, dar-se oportunidade e da sociedade, a obrigação é aceitá-lo de volta até segunda ordem, até que ele prove o contrário, de que ele não mereça a confiança.

A sociedade tem a obrigação, assim como os pais têm a obrigação de receber seu filho de volta na sua casa. É obrigação da sociedade “reaceitar”, reabilitar, reencontrar e dar um lugar na sociedade para os seus filhos que ela colocou na rua.

Considerações finais

O relatório contendo as informações solicitadas foi entregue em outubro de 2015, pela Profam Dra. Hercília Junqueira (UNIR), e as instituições envolvidas no Projeto de uso da Ayahuasca para ressocialização de presidiários, ainda aguardam o posicionamento das autoridades judiciais.

Como dissemos no início desta comunicação, uma profícua experiência foi desenvolvida com o uso de Ayahuasca, entre os anos de 2012 e 2016, através de um convênio entre a ONG Acuda e a instituição religiosa ayahuasqueira Lar de Frei Manuel (Barquinha de Ji-Paraná – Rondônia).

Essa rica e importante experiência foi, posteriormente, suspensa pelo Poder Judiciário do Estado de Rondônia. Porém, os diretores da ONG Acuda não esmoreceram, apesar das dificuldades e demora de posicionamento do Poder Judiciário.

Determinados que são em busca do alcance de seus objetivos, foi adquirida uma chácara na zona rural de Porto Velho – Rondônia, batizada de ‘Rancho Divina Luz’, onde está sendo construída a ‘Casa de Passagem Lar de Jesus e de Frei Manuel’, para amparar dependentes químicos, pessoas em situação de rua e ex-presidiários.

Com orientação de Edilsom Fernandes, presidente da Barquinha de Ji-Paraná, nestas terras desenvolvem um plantio de folha Rainha/Chacrona e Cipó Jagube/Mariri, vegetais que produzem a Ayahuasca, para futuras ações religiosas e terapêuticas com a regeneradora bebida, e dessa maneira conquistarem sustentabilidade. E para sempre esta luz nunca faltar.

Eu tomo Daime para ver os meus defeitos

Eu tomo Daime para eu me corrigir

Não tomo Daime para me engrandecer

Porque o grande é Jesus e está aqui

 

Eu tomo Daime para acender minha luz

E esta luz meu Jesus é quem me dá

Por isso eu devo consagrar no coração

Que também é da Virgem da Conceição

 

Eu tomo Daime e considero esse vinho

O mesmo vinho que Jesus deu pra tomar

Aos seus Apóstolos e disse: “Em minha memória

Que é para sempre esta luz nunca faltar”

(Em Minha Memória, Hino de Padrinho Valdete)

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Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.