Covid-19, profissionais de saúde e o conforto da morte | Por Ângelo Augusto Araújo

Em Manaus, hospital de campanha municipal Gilberto Novaes reforça o atendimento aos portadores da Covid-19. Profissionais da saúde na luta contra o novo coronavírus estão entre às vítimas do patógeno.
Em Manaus, hospital de campanha municipal Gilberto Novaes reforça o atendimento aos portadores da Covid-19. Profissionais da saúde na luta contra o novo coronavírus estão entre às vítimas do patógeno.
Em Manaus, hospital de campanha municipal Gilberto Novaes reforça o atendimento aos portadores da Covid-19. Profissionais da saúde na luta contra o novo coronavírus estão entre às vítimas do patógeno.
Em Manaus, hospital de campanha municipal Gilberto Novaes reforça o atendimento aos portadores da Covid-19. Profissionais da saúde na luta contra o novo coronavírus estão entre às vítimas do patógeno.

Dia 1º de maio de 2020, feriado nacional para homenagear o trabalhador. As ruas estão mais tranquilas que de costume, poucos carros e pessoas transitando, o Brasil respira calmamente e com dificuldade, um breve alívio no sentido de conter a pandemia pelo novo coronavírus. Nesse momento crítico de pandemia e de aparente tranquilidade, existe um setor que não para, 24 horas por dia e 7 dias por semana em plena atividade, com o trânsito intenso, movido pelo estresse e falta de condições de trabalho, refiro ao setor de saúde, especificamente aos trabalhadores da saúde e a pandemia.

Desde o começo da pandemia, os relatos de contágios e perdas dos profissionais da saúde somam-se a cada dia (SARAIVA, 2020; CORSINI, 2020). Envolvidos com o manuseio dos pacientes com a Covid-19, os trabalhadores da saúde vive em meio de grandes responsabilidades (ALBUQUERQUE; BARBON, 2020), sob atividades estafantes, entre troca de plantões, salários atrasados, medo de contaminação, e pressionados a tomar decisões de quem irá viver e de quem irá morrer pela falta de recursos, assim como,  inseguros pela sua própria vida. O setor de saúde e seus profissionais encontram-se nesse cenário avassalador, sofrendo diretamente o impacto de uma doença sem predileções de classe, que desrespeita os estamentos e atinge a todos, absorvendo as consequências das más decisões das gestões públicas que não priorizaram a saúde coletiva e as questões humanas, a necropolítica[1].

A gestão pública brasileira vive aos tropeços com planejamentos deficientes, passando por cima dos conceitos fundamentais constitucionais, transferindo as responsabilidades do Estado-nação de encontrar soluções coletivas para o cidadão como indivíduo, movendo-se na direção da necropolítica e deixando de observar os princípios constitucionais prescritos nos seguintes artigos (GOVERNO DO BRASIL, 1988): 5º – “todo e qualquer cidadão deve ser tratado sem distinção e sem a violabilidade dos direitos a liberdade, igualdade e segurança”; e 196 – “afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediantes políticas SOCIAIS e ECONÔMICAS que objetivem a redução dos riscos de doenças e seus agravos, assim como, o acesso universal e igualitário às ações e serviços que garantam a PROMOÇÃO, PROTEÇÃO  e RECUPERAÇÃO.”

Os processos decisórios são fundamentados nas bases éticas e constitucionais de cada ato que se propõem as diversas profissões. As ocupações relacionadas aos cargos de liderança, qualquer que seja, setores públicos e privados, no caso, o próprio profissional de saúde e a relação com o seu público alvo, os pacientes, terão obrigações éticas e legais a cumprirem.

Nos processos decisórios dos gestores públicos para enfrentamento da pandemia pela Covid-19, o que se percebe, entre alguns deles, é que existe uma transferência gradual de responsabilidades, ou seja, do Estado-Nação para a população e, especificamente observado nesse artigo, para os profissionais de saúde, que, pela falta de recursos de proteção (EPI[2] adequado para o nível de risco de contágio) somado as deficiências do planejamento de contingenciamento, terão que decidirem pela vida dos seus pacientes, de si próprio e de seus familiares.

O uso do necropoder, ou seja, poder de vida e morte sobre os cidadãos, é colocado em curso através da necropolítica governamental, cujos atos são contrários aos interesses da população e dos profissionais de saúde em manterem as próprias vidas. Como exemplo, observa-se no mercado hiperinflacionado de EPIs, a transferência de obrigação da gestão coletiva para o individuo na busca de equipamentos de proteção. O que demonstra isso é o aumento da procura individual por EPIs pelos profissionais de saúde, objetivando garantir os mecanismos de defesas e assegurar o exercício ideológico da profissão, salvar vidas. Assim como, manter a possibilidade de auto sustentação financeira e o acordar na manhã seguinte para continuar a sua rotina.

A análise

Baseando nas argumentações anteriormente expostas, o artigo propõe uma análise conceitual da afirmação, que fundamentam os direcionamentos e as atitudes que caracterizam o discurso da necropolítica, que transfere e empurra os processos decisórios para os profissionais de saúde, assim como, oculta a deficiência de atitudes proativas relacionadas com a proteção de um trabalhador fundamentalmente importante no curso dessa guerra contra o novo coronavírus. O necropoder desconsidera a magnitude da pandemia e, consequentemente, desrespeita a constituição, sendo que na sua lógica, entende que a prioridade é a força de trabalho, a saúde do trabalhador em segundo plano, distorce a percepção de produtividade e desconsidera a necessidade do achatamento da curva de contaminação, que tem como finalidade a diminuição da demanda para o setor de saúde, que por sinal, está em vias de colapso. Afirmação:

“O retorno imediato às atividades econômicas é mais importante. A economia é tudo, ou morrerão muito mais pessoas de fome”.

Brasil, realidade, necropolítica e a análise da afirmação

Essa afirmação tem certa lógica, quando se argumentam os riscos de descontrole social e violência junto com a fome e a miséria, contudo, não exclui ser um ponto de vista reducionista, mas válido. Entretanto, na óptica de liderança e responsabilidade constitucional de um país, existe o que pode se argumentar como a transferência de responsabilidade, inconstitucionalidade, por parte dos governantes que adotam essa premissa, necropolítica.

No caso do Brasil, o artigo 196 da Constituição (GOVERNO DO BRASIL, 1988), deixa claro que é obrigação do estado adotar POLÍTICAS SOCIAIS e ECONÔMICAS que visem a redução dos riscos de doença e seus agravos.

Os governos de muitos países vêm adotando medidas econômicas volumosas para os cuidados dos cidadãos (Reuters, 2020; Gov.UK, 2020; RFI, 2020), com o intuito de tranquilizá-los dos transtornos financeiros e manter o isolamento social, objetivando a diminuição das demandas nas unidades de saúde, preocupados com a escassez de equipamentos de proteção para os profissionais e pacientes, e da quantidade de leitos ofertados, tentando evitar com isso a perda de profissionais de saúde e a transferência da decisão de quem irá viver e quem irá morrer. Até que se tenha certeza das medidas de segurança que serão adotadas para os retornos das atividades, de um modo geral, os países têm como valor maior a vida, honrando, com isso, os preceitos constitucionais de cidadania.

Lógico, que os discursos que enfatizam o desemprego que, consequentemente, gerará a fome e irá aumentar a susceptibilidade do individuo ao vírus, não deixa de ser válido. Entretanto, trata-se de um problema recorrente observados nas outras endo-epidemias cíclicas que existem, o que agravará ainda mais o embate contra o coronavírus. Contudo, é a relação da razão entre política econômica e saúde dos indivíduos, igual as consequências que devem pesar nesse momento. E nesse momento, é responsabilidade do Estado-nação adotar medidas que protejam os cidadãos e seus direitos constitucionais.

O que se vê são nações e blocos econômicos pesadamente aumentando o influxo de dinheiro na economia, evidentemente pensando minuciosamente na retomada da economia e, principalmente, na proteção da vida do cidadão, objetivando as medidas de segurança com a permanência do isolamento social, não transferindo a responsabilidade do Estado-nação para o indivíduo.  No Brasil, nesse momento de crise pandêmica que ameaça a integridade física, mental e social de um país, destruição de parte da sua população e dos aspectos conjunturais de identidade como nação, é obrigação do Estado-nação procurar meios para manter o individuo seguro, em casa, transferindo o sentimento de coletividade e não de individualismo.

O problema é de todos e todos são representados pelo estado, e o estado tem por obrigação constitucional preservar a vida, a saúde mental, física, econômica e social dos indivíduos que o constituem. Caso contrário, as políticas mal planejadas de mitigação não atingirão os objetivos.

As argumentações das desigualdades sociais e desemprego estão fundamentadas em conceitos rasos, portanto, trata-se de um problema estrutural crônico que talvez explique, em parte, o número crescente de óbitos pela Covid-19, e qual é a relação da ponderação de uma coisa e ou outra, talvez nunca iremos saber.  Se não forem adotadas políticas econômicas e sociais sérias, que venham amparar um grande contingente populacional que vive em condições de vulnerabilidade, certamente chegaremos a números de óbitos inimagináveis, e os profissionais de saúde serão obrigados a decidir entre quem irá viver e quem irá morrer.

No entendimento que compõe a relação de produtividade e força de trabalho, está embutido a obrigação institucional de proteção da saúde do trabalhador (GOVERNO DO BRASIL, 1988). O desrespeito dessa relação por instituições de qualquer natureza, seja pública ou privada, é considerado um ato inconstitucional, que poderá ser questionado juridicamente. É obrigação das instituições adquirirem instrumentos que assegure a proteção individual do trabalhador no exercício da profissão. Focar na força produtiva do trabalho é desconsiderar a relação que existe entre a força produtiva do individuo e a sua saúde, transforma-o em uma máquina de produzir e desconsidera a humanidade do ser.

Conclusão

Nesse momento crítico, o que se observa no Brasil é uma transferência da responsabilidade do Estado para os cidadãos, deixando claro a ideia de que todos têm, individualmente, que buscar suas soluções, mesmo em momentos de guerra, crise pandêmica, em um estado mínimo.

Observando que isso está acontecendo de forma contrária em outros países, os quais tem os princípios éticos fundamentados na valorização da vida, igualdade e fraternidade, assim como na identidade de cidadania e constituição de um Estado-nação. No contexto, destaca-se que os países vêm aumentando bruscamente a oferta de recursos para a saúde, e adotando atitudes econômicas para que a população mantenha as políticas de mitigação.

No Brasil devido a anergia e ao desrespeito aos princípios constitucionais da nação, a população começa a raciocinar com a barriga e procura as soluções que o estado não oferece; os profissionais de saúde são expostos como soldados rasos, como se existisse um grande contingente de reserva, sem as mínimas condições de trabalho; recursos públicos são desperdiçados em ações mal planejadas e desviados dos objetivos. Tudo isso, conduzindo a transferência da responsabilidade do Estado-nação com o individuo, ao individuo, pela sua própria sobrevivência durante a pandemia.

As condições que estão sendo estruturadas, demonstradas pelos números crescentes de novos casos e óbitos,  destacado por artigo que sugere que o Brasil tem a maior taxa de contágio do mundo [3], são certificadas pelas afirmações analisadas que refletem os caminhos para necropolíticas, sendo o poder de decisão e enfrentamento da pandemia, transferida para a população e, especialmente, para os profissionais da saúde que terão de tratar, sem os devidos recursos, diariamente as pessoas infectadas.

Os trabalhadores da saúde, soldados rasos, são pessoas, seres humanos, que têm sentimentos e família, que poderão ir para guerra e não mais voltar, lutando na linha de frente, e sem as condições mínimas de trabalho, terão que decidir pela VIDA e pela MORTE, de si própria e dos outros. Hotéis são contratados para alojar os profissionais da saúde, promovendo um falso conforto e o distanciamento das suas famílias, no sentido utilitário de esconder a deficiência de recursos de proteção, o alto contágio e contenção dos vetores de transmissibilidade.

*Ângelo Augusto Araújo (angeloaugusto@me.com), médico, pesquisador, doutor em saúde pública e doutorando em Bioética pela Universidade do Porto.

Referências

AGRELA, L. Estudo mostra que Brasil tem maior taxa de contágio de covid-19 no mundo | EXAME. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/ciencia/estudo-mostra-que-brasil-tem-maior-taxa-de-contagio-de-covid-19-no-mundo/&gt;. Acesso em: 1 maio. 2020.

ALBUQUERQUE, A. L.; BARBON, J. Médicos do Rio trabalham com salário atrasado e sintomas de coronavírus – 30/04/2020 – Equilíbrio e Saúde – Folha. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/medicos-do-rio-trabalham-com-salario-atrasado-e-sintomas-de-coronavirus.shtml&gt;. Acesso em: 1 maio. 2020.

CORSINI, I. Pesquisa mostra quais profissões estão mais expostas ao novo coronavírus | CNN Brasil. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/04/07/profissoes-mais-expostas-a-covid-19&gt;. Acesso em: 2 maio. 2020.

GOV.UK. £2.9 billion funding to strengthen care for the vulnerable – GOV.UK. Disponível em: <https://www.gov.uk/government/news/2-9-billion-funding-to-strengthen-care-for-the-vulnerable&gt;. Acesso em: 1 maio. 2020.

MBEMBÉ, J.-A.; MEINTJES, L. Necropolitics. Public culture, v. 15, n. 1, p. 11–40, 2003.

REUTERS. Europe needs at least 500 billion euros from EU institutions for recovery: ESM – Reuters. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-eurozone-recovery/europe-needs-at-least-500-billion-euros-from-eu-institutions-for-recovery-esm-idUSKBN22104U&gt;. Acesso em: 1 maio. 2020.

RFI. US agrees $2 trillion Covid-19 rescue plan, the largest in American history. Disponível em: <http://www.rfi.fr/en/economy/20200325-us-agrees-2-trillion-covid-19-rescue-plan-the-largest-in-american-history&gt;. Acesso em: 1 maio. 2020.

SARAIVA, A. Estudo vê 2,6 milhões de profissionais de saúde com risco de contágio acima de 50% | Brasil | Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/08/estudo-ve-26-milhoes-de-profissionais-de-saude-com-risco-de-contagio-acima-de-50percent.ghtml&gt;. Acesso em: 2 maio. 2020.

[1] A necropolítica é um conceito desenvolvido pelo pesquisador camaronês da teoria Pós-colonial Achille Mbembe (MBEMBÉ; MEINTJES, 2003), doutor em filosofia pela Universidade de Sorbonne, em Paris. Segundo o pesquisador, essa forma de política contemporânea abrange as várias maneiras pelas quais o exercício da necropolítica é utilizada para definir o direito de quem vive, ou quando as pessoas devem morrer.

[2] EPI – Equipamento de Proteção Individual.

[3] Estudo mostra que o Brasil tem a maior taxa de contágio de Covid-19 no mundo (AGRELA, 2020).

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Sobre Ângelo Augusto Araújo 54 artigos
Dr. Ângelo Augusto Araujo (e-mail de contato: angeloaugusto@me.com), médico, MBA, PhD, ex-professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), especialista em oftalmologia clínica e cirúrgica, retina e vítreo, Tese de Doutorado feita e não defendida na Lousiana State University, EUA, nos seguintes temas: angiography, fluorescent dyes, microspheres, lipossomes e epidemiologia. Doutor em Saúde Pública: Economia da Saúde (UCES); Doutorando em Bioética pela Universidade do Porto; Master Business Administration (MBA) pela Fundação Getúlio Vargas; graduado em Ciências Econômicas e Filosofia; membro do Research fellow do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Sergipe; membro da Academia Americana de Oftalmologia; da Sociedade Europeia de Retina e Vítreo e do Conselho Brasileiro de Oftalmologia; e diretor-médico da Clínica de Retina e Vítreo de Sergipe (CLIREVIS), em Aracaju, Sergipe.