Sardinha assado. Receita caeté | Por Juarez Duarte Bomfim

Em poema épico o Padre Anchieta descreve que D. Pero Fernandes Sardinha portou-se com altivez e resignação no momento em que, amarrado e despido, aguardava o golpe que lhe partiu o crânio
Em poema épico o Padre Anchieta descreve que D. Pero Fernandes Sardinha portou-se com altivez e resignação no momento em que, amarrado e despido, aguardava o golpe que lhe partiu o crânio

Em poema épico o Padre Anchieta descreve que D. Pero Fernandes Sardinha portou-se com altivez e resignação no momento em que, amarrado e despido, aguardava o golpe que lhe partiu o crânio

Pero Fernandes Sardinha, nascido em Évora, 1495, formado em Direito e Teologia nas universidades de Salamanca e de Paris (Sorbonne) foi mestre de latim no Colégio de Santa Bárbara, em Paris e de Direito Canônico na Universidade de Coimbra. Foi professor de Simão Rodrigues (superior do Padre Manuel da Nóbrega), de (Santo) Inácio de Loyola e de (São) Francisco Xavier, fundadores da Companhia de Jesus.

A cidade do Salvador foi fundada em 29 de março de 1549 para ser a capital da colônia portuguesa no Brasil, e já em 25 de fevereiro de 1951 ascende à condição de Diocese, sendo D. Pero Fernandes Sardinha nomeado seu primeiro bispo.

D. Pero Sardinha tinha sido magistrado eclesiástico e visitador-geral da Diocese de Goa, na Índia, em 1445, portanto um agente da temida e violenta Inquisição portuguesa.

O seu apostolado em Terraes Brasilis durou quatro anos, quando inicia retorno a Portugal, chamado pelo rei D. João III. Neste período, amealhou uma imensa fortuna em ouro obtido graças à estratégia de substituir “penas eclesiásticas” por “penas pecuniárias” aos “pecadores”, a cobrança em dinheiro e ouro pela absolvição dos pecados dos fieis — prática esta que tinha levado Martinho Lutero à rebelião e cizânia protestante.

A conduta corrupta do Bispo Sardinha não ocorre sem protesto, pois depõe o Padre Manuel da Nóbrega, em 1553, que “o povo, assim da cidade do Salvador como das capitanias, ao ver que lhe levam o seu dinheiro, ganharam grande ódio ao bispo e aos seus visitadores”.

Sardinha parte de volta a Portugal na lendária nau Nossa Senhora da Ajuda, a mesma que tinha trazido o Governador-Geral Tomé de Sousa para fundar Salvador. Embora fosse um navio desgastado por mais de década de bons serviços, estava em boas condições para navegação.

Partindo da capital em direção ao Nordeste, sempre nas proximidades da costa, a embarcação desvia de cabos e baixios. Deixa para trás os pontais de Itapuã e Tatuapara, ultrapassa a foz do Rio Real, a foz do Vaza Barris e a ampla e barrenta foz do São Francisco (hoje fronteira entre Sergipe e Alagoas).

Na madrugada de 15 de junho de 1556, quando o navio aproxima-se da perigosa foz do Rio Coruripe, imperava o mau tempo e, sob a escuridão tempestuosa, a visibilidade era quase nula.

Com os padres em reza e a maruagem em febril atividade deu-se a tragédia: jogada pelas ondas contra os corais pontiagudos em meio aos quais deságua o Coruripe, a nau encalhou. Logo depois, a velha embarcação foi tragada pelas ondas, com um grande estrondo.

Ainda assim, não houve vítimas fatais. Apesar da força dos ventos e das águas, os cerca de cem passageiros sobreviveram ao naufrágio e, atônitos e encharcados, agruparam-se nas partes arenosas do banco de corais, à flor da água. Ao raiar do dia, transferiram-se para a praia que ficava em frente.

Nada pôde ser retirado do navio, nem o ouro do bispo, talvez lembrando a tal sacerdote corrupto o ensino de Cristo Jesus: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.

Sardinha, os cônegos, as únicas duas mulheres à bordo, os funcionários públicos, os pilotos, os marujos, os fidalgos, os plebeus e os escravos chegaram sãos e salvos à terra firme. Não por muito tempo, viriam logo a descobrir, pois pisavam solo inimigo.

Esperavam-lhes à beira do mar os emplumados e belicosos índios caetés. Seu território tribal se estendia da margem esquerda do São Francisco à Ilha de Itamaracá, Pernambuco. Estavam em guerra contra os tabajaras, aliados dos portugueses e, por conseqüência, também inimigos destes.

Não houve logo conflito. Inclusive os índios teriam até se oferecido para guiar os sobreviventes a chegarem na capitania de Pernambuco. Todavia, no momento em que os portugueses atravessavam a Barra de São Miguel (concorrido balneário turístico na atualidade), foram atacados de surpresa.

Houve poucos sobreviventes ao massacre. O Padre Manuel da Nóbrega diz que “não restou casa em que não houvesse viúva ou órfão em Salvador” — à época a Cidadela de Salvador contava com uma população que não passava de um milhar.

O bispo Sardinha assistiu a carnificina na margem norte do rio. Talvez pelas suas vistosas roupas, há de ter sido visto como uma inestimável presa de guerra. Não seria poupado.

No canibalismo ameríndio, a morte ritualizada e a deglutição eucarística dos cativos representavam o ponto culminante de uma cerimônia cujo sacramento maior, e objetivo quase único, era a vingança.

Os Tupi em geral devoravam apenas inimigos que julgavam dignos de receber aquela que, na sua visão, era a mais honrosa das mortes; para a vítima era igualmente a mais gloriosa das mortes, pois consideravam o estômago do inimigo a sepultura ideal.

Não sabemos se assim também pensava o bispo Sardinha. Entretanto, em poema épico o Padre Anchieta descreve que D. Pero Fernandes Sardinha portou-se com altivez e resignação no momento em que, amarrado e despido, aguardava o golpe que lhe partiu o crânio.

Sua morte teria adquirido, assim, contornos de martírio e, apesar das contundentes críticas ao seu comportamento no Brasil, logo houve quem propusesse a sua beatificação.

É improvável que seu sugestivo nome tenha motivado a sua ingestão pelos índios; porém impossível não fazer esta associação, já que o prato do dia foi Sardinha assado.

Desde a minha infância, diverte e entretêm as crianças do Ensino Fundamental a incrível história do triste fim do primeiro Bispo do Brasil, D. Pero Fernandes Sardinha, deglutido pelos guerreiros canibais índios caetés.

Mesmo tendo sido professor dos fundadores da Ordem dos Jesuítas – e talvez por isso mesmo — D. Pero era seu feroz adversário. Além disso, ele não era simpático aos guerreiros e também canibais índios tupinambás da Baía de Todos os Santos, que festejaram a sua morte.

O padre jesuíta Manuel da Nóbrega, ferrenho crítico do bispo Sardinha, afirma que a sua “gloriosa” morte foi obra de quem quis desta forma “pagar-lhe suas virtudes e grande bondade, e castigar-lhe juntamente o descuido e pouco zelo que tinha da salvação do gentio”.

Hoje, na Praça da Sé, no Centro Histórico de Salvador, encontra-se um busto em homenagem ao primeiro bispo do Brasil, bem em frente ao imponente prédio setecentista do Palácio Arquiepiscopal.
Nos frequentes tours que realizo com grupos de visitantes ao Pelourinho, devido ao breve tempo, sou obrigado a resumir o infeliz e surpreendente ocaso do bispo Sardinha.

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Sobre Juarez Duarte Bomfim 726 artigos
Baiano de Salvador, Juarez Duarte Bomfim é sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Tem trabalhos publicados no campo da Sociologia, Ciência Política, Teoria das Organizações e Geografia Humana. Diversas outras publicações também sobre religiosidade e espiritualidade. Suas aventuras poético-literárias são divulgadas no Blog abrigado no Jornal Grande Bahia. E-mail para contato: juarezbomfim@uol.com.br.

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