A Grande Noite se espalha como fumaça
e nossas peles contritas, num espasmo
escurecem cheias de dores recém-acordadas
e chagas plantadas agora, nascidas nesse instante
Em 31 de março de 1964 tanques do Exército ocuparam Brasília e o presidente eleito foi deposto. Instaurou-se um regime autoritário de privação de liberdades. A grande noite baixou sobre os brasileiros.
A Grande Noite é longa e mais negra, e mais densa
que todas as outras noites
nela cabe o estupor, o medo e todos os pesadelos, juntos
despertando o assombro naqueles que tinham dormido sob o sol
e em tantos que permaneceram em vigília
Perseguições, detenções, exílios, torturas e assassinatos. Os “gorilas” — a linha dura militar — declararam guerra contra o seu próprio povo.
O regime autoritário brasileiro de 1964 teve características particulares que o diferenciaram das formas clássicas do fascismo. No lugar de culto ao líder e mobilização permanente do gado humano — como no nazismo hitlerista — aqui se desestimulava qualquer atividade política da sociedade civil, inclusive manifestações de apoio vindas dos lambe-botas oportunistas, ávidos por uma porção da pilhagem perpetrada contra o patrimônio público.
Até os puxa-sacos do regime militar, quando inconvenientes, eram cassados e ameaçados — como Carlos Lacerda e Jânio Quadros.
A relação Estado e sociedade passou a ser permeada pela intolerância e autoritarismo. Pelo medo. O autoritarismo se tornou norma em todas as esferas da vida social: patrões – empregados, professores – alunos; maridos – esposas; país – filhos.
O problema das ditaduras não é apenas o ditador que está encastelado no palácio. O problema da ditadura é também o guarda da esquina. Isto é, a materialização da brutalidade no cotidiano das pessoas.
Um dos aspectos que marcaram a Ditadura Militar foi o ataque contra a inteligência. A guerra à inteligência. Invasões de universidades, encarceramento de intelectuais, perseguição a professores e alunos. As Ciências Humanas foram as vítimas preferenciais, a Sociologia em particular.
Porém, as vítimas eram todos. Professores de engenharia hidráulica sofriam acusações de serem terroristas por terem na bibliografia de suas matérias o livro “Bombas”. Na fase inicial da Ditadura, antes da brutalidade extrema do AI-5, havia lugar para a sátira política, e o jornalista Sérgio Porto, codinome Stanislaw Ponte Preta, criou a série de crônicas denominada FEBEAPÁ – Festival de Besteiras que Assolam o País.
(Em uma ditadura anterior, a do Estado Novo —1937 a 1945 — um outro humorista, Aparício Torelly, o Barão de Itararé, cansado de apanhar da polícia política na hora de suas corriqueiras detenções, criou uma placa de porta de escritório até hoje muito utilizada: “Entre sem bater”)
Censura a arte. A banalização do mal
Todas as formas de expressão artística foram submetidas a uma rígida censura, de viés fascista. Em nome da moral e dos bons costumes e da luta contra o “comunismo”, o obscurantismo baixou sobre o Brasil.
A Grande Noite não perdoa, ela é um trator que arrasa a terra
é como uma grade que nos cerca
um pavio apagado, um navio à deriva, um náufrago
um véu que cobre o céu de maneira tão completa
que sequer é possível observar o dia do outro lado
A cientista política alemã Hannah Arendt refletiu sobre a “banalização do mal”, ao escrever a propósito do julgamento de Eichmann em Jerusalém, onde se revela que o principal executor do extermínio em massa dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, Adolf Eichmann, no lugar de ser um monstro desapiedado e poço de maldade como todos esperavam, se apresentou aos olhos estupefatos do mundo como sendo alguém “normal”: um funcionário mediano, mero burocrata cumpridor de ordens, incapaz de separar o bem do mal ou de refletir sobre seus atos.
Assim também eram os funcionários públicos encarregados da censura a arte e a imprensa no regime militar brasileiro. No teatro, era obrigatório na antevéspera da estreia, se fazer uma apresentação da peça para o censor de plantão.
O zeloso funcionário público, cumpridor do seu dever, chegava ao recinto teatral, sentava na plateia, assistia a todo o espetáculo e, ao término, mandava cortar cenas e mais cenas da encenação, a partir de seus critérios subjetivos.
Não importava o tema ou se a peça era infantil, juvenil ou para adultos. O que importava era que o cioso funcionário tinha que mostrar serviço para a chefia. Algo havia que censurar, que cortar.
Muitas vezes a peça era censurada por inteiro, como o musical “Calabar: o elogio da traição”, de Chico Buarque e Ruy Guerra, em 1974.
A Grande Noite mente
diz que o dia não existe
conta que as fantasias são pesadelos
que não há lua
que não há outra noite, além dela
Censura a MPB – Música Popular Brasileira
Quando recordamos da dura e cruel censura a Música Popular Brasileira – MPB durante a Ditadura Militar, nos vem à memória os nomes de vítimas emblemáticas como Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Veloso e Gilberto Gil — que amargaram a prisão e o exílio.
Porém, há um episódio pouco conhecido da imbecilidade, arbitrariedade e abuso de poder dos “gorilas” golpistas e tiranos, que foi a censura e perseguição a compositores e cantores românticos, ingênuos e populares, que tinham um público fiel entre os mais humildes, pessoas de baixa escolaridade, moradores das periferias urbanas e da zona rural brasileira.
A esse tipo de música se dá o nome de “brega”. Na época os seus autores eram “cafonas” e desprezados pelo público universitário e dos festivais da Record, de gosto mais refinado.
Poderia ser considerado insólito, bizarro e tragicômico dar o exemplo do cantor popular Odair José como um dos mais censurados e perseguidos durante a Ditadura Militar. Todavia não!
Não! Não podemos subestimar a capacidade de destruição da inteligência e do humanismo pelos fascistas no poder. A capacidade de perpetrar o abuso e o mal. Não importa contra quem seja.
2 exemplos, a seguir: o cantor Odair José fez uma canção romântica, de paixão por uma prostituta, que tem o seguinte refrão: “eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo, e não interessa o que os outros vão pensar…”.
Veredito da Censura oficial: censurada, proibida de tocar em rádios, em shows e os discos de vinil deveriam ser retirados das prateleiras das lojas. O motivo: a suspeita que a frase “eu vou tirar você desse lugar” era uma incitação revolucionária comunista para derrubada do governo dos generais…
O segundo exemplo: regimes ditatoriais fascistas são inimigos da vida. São implementados para disseminar a violência e a morte. O inimigo do regime eram os pobres e as altas taxas de natalidade entre eles. Era necessário incrementar uma política de controle de natalidade. Não importava que o Brasil não fosse superpopuloso como a China ou a Índia, e seu território fosse de baixa densidade demográfica. Os pobres tinham que parar de nascer.
Em 1973 o regime militar instituiu uma política de “controle de natalidade” cujo principal ponto do programa era a distribuição de pílulas anticoncepcionais. Neste mesmo ano o cantor Odair José “estoura” com um megassucesso nas rádios: “Pare de Tomar a Pílula”.
Diz a letra: “Você diz que me adora / que tudo nessa vida sou eu / então eu quero ver você / esperando um filho meu”… e aí vinha o famoso refrão “pare de tomar a pílula / pare de tomar a pílula / porque ela não deixa nosso filho nascer”.
Veredito da Censura Oficial: proibida. Incitação à desobediência civil, à insurgência revolucionária comunista.
Quando vinha a proibição, as músicas já eram sucesso nas rádios de todo o Brasil. Em depoimentos, o cantor Odair José afirma que, antes dos shows, ele era notificado que tais e tais músicas estavam proibidas de serem cantadas. O público, que sequer sabia da proibição, começava a cantar, uníssono. O cantor se entusiasmava e… cantava junto. Saía direto do palco para a delegacia de costumes, prestar depoimentos e ser ameaçado pelo delegado de plantão.
Dignamente, o cantor e compositor Caetano Veloso convidou Odair José ao palco, no antológico festival de música “Phono 73” para cantar a sua “Vou Tirar Você Desse Lugar“. A vaia ecoou no Anhembi, um protesto do público branco, chique, paulista contra o cantor popular “alienado” — quando os alienados eram eles.
Em 1968, o mesmo Caetano, sob vaias ao seu “É proibido proibir” questionou:
— …Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (…) São a mesma juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem? Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada (…) Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada.
Dessa vez, já em 1973, frente aos brancos ricos paulistas, Caetano declarou ao microfone, também sob vaias:
— Não há nada mais Z do que a classe A.
Quanto a Odair José, os “gorilas” do regime militar fizeram com o artista o que ele prometera à apaixonada prostituta: “eu vou tirar você desse lugar”… quer dizer, forçaram o cantor, sob ameaças, a se exilar em Londres – Inglaterra.
a turba atônita acredita e venera e dá graças
À Grande Noite
empunhando tochas, tocos de velas, palitos de fósforo
devotadamente
na esperança de viver e morrer sob seu manto compacto
A Grande Noite abraça, afaga
e determina
que seu nome é Dia
(e, tolos, todos acreditamos)
(Poema “A grande noite”, de Escobar Franelas).
*Juarez Duarte Bomfim, sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha; e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
‘Eu vou tirar você desse lugar” Caetano Veloso e Odair José: